“Naquele tempo, ia Jesus pôr-se a caminho, quando um jovem se aproximou correndo, ajoelhou diante d’Ele e perguntou- lhe: «Bom Mestre, que hei-de fazer para alcançar a vida eterna?». Jesus respondeu: Tu sabes os mandamentos: ‘Não mates; não cometas adultério; não roubes; não levantes falso testemunho; não cometas fraudes; honra pai e mãe’». O jovem disse a Jesus: «Mestre, tudo isso eu tenho cumprido desde a juventude». Jesus olhou para ele com simpatia e respondeu: «Falta-te uma coisa: vai vender o que tens, dá o dinheiro aos pobres e terás um tesouro no Céu. Depois, vem e segue-Me». Ao ouvir estas palavras, o jovem ficou abatido e retirou-se pesaroso, porque era muito rico.”

Esta conhecida parábola do Novo Testamento evidencia a dificuldade que nós, seres humanos, sentimos perante o problema do desapego. Não será por acaso que certas ordens monásticas exigem aos seus membros os votos de castidade, obediência e pobreza. O desapego sempre foi uma exigência central dos caminhos da espiritualidade.

– Mas desapego de quê? perguntarão os nossos leitores. Não haverá apegos perfeitamente legítimos e louváveis tais como aqueles que devotamos aos nossos familiares, amigos e concidadãos? Se nos desapegarmos dos deveres assumidos para com estes não estaremos exactamente a assumir uma postura egoísta e irresponsável? Procuremos esclarecer a situação. A exigência espiritual do desapego assenta numa evidência do quotidiano – a de que tudo na nossa vida é efémero e transitório – pessoas, objectos, cargos, estatutos, tudo existe durante um certo período de tempo e depois termina ou muda de natureza: os filhos afastam-se dos pais, os objectos degradam-se e desaparecem, os cargos e estatutos têm períodos de vigência, as relações humanas modificam-se e até terminam… Ora, sendo assim, não fará muito sentido que nos apeguemos de forma exagerada a ligações que estão destinadas a findar. E isto por duas razões: em primeiro lugar, porque quanto maior for o apego às coisas e pessoas, maior será o sofrimento no momento da separação; em segundo, porque esse apego gera frequentemente sentimentos de posse, ciúme e inveja que envenenam as relações com terceiros.

E importa aqui distinguir claramente entre apegos e afectos. Os apegos implicam uma postura possessiva e senhorial sobre um “objecto”, uma convicção mais ou menos explícita de o considerar como propriedade sua e de o tratar como tal. Pelo contrário, o afecto vê o “objecto” não como uma espécie de bem pessoal sobre o qual se detêm direitos absolutos, mas como algo que a vida nos permite momentaneamente fruir (como um automóvel) ou em relação ao qual detemos deveres e afeições temporárias (como um filho ou um cônjuge). Todos os Mestres da Sabedoria experimentam uma profunda afeição paternal pelos seus discípulos mas nenhum se arroga qualquer sentimento de posse ou apego em relação a eles. Os seus discípulos são encarados como seres que, transitoriamente, se encontram sob a sua orientação e responsabilidade, não como objectos que lhes pertencem e de que poderão dispor segundo os seus caprichos e conveniências. Compete-lhes, enquanto mentores espirituais, fazerem o seu melhor para que os discípulos se tornem seres completamente autónomos e capazes de, por si sós, realizarem o seu percurso de vida, sem necessitarem mais do seu apoio e orientação. A maior felicidade de um Mestre em relação ao seu discípulo acontece quando a sua orientação se torna dispensável. Isso significa que o discípulo já se tornou ele próprio um Mestre e ele cumpriu a sua função.

Compete-nos aplicar à nossa vida esta mesma postura. A espiritualidade não nos proíbe de fruir o prazer que este ou aquele ser ou objecto nos possam proporcionar. Apenas nos interdita de o considerarmos absoluta e permanentemente como nosso, assumindo uma postura egoísta e egocêntrica que acaba sempre por degenerar em ciúme ou conflituosidade e, por isso, em sofrimento. O ponto fundamental que deveremos considerar quando reflectimos sobre o desapego é justamente a natureza transitória e efémera do mundo, das coisas e dos seres. Para quê estabelecer um laço obsessivo com algo que sabemos que, mais cedo ou mais tarde, irá terminar, gerando sofrimento? Será certamente muito mais inteligente e sensato fruir a sua presença de forma intensa mas serena, com a plena consciência da sua finitude. Nesse momento, o desligamento do laço para com ele será muito mais tranquilo e menos doloroso. O mesmo se passa, nas relações pessoais. Por muito que se estime alguém, essa relação irá um dia terminar – pela morte ou por um afastamento natural ou forçado. É lícito que se viva essa relação com o máximo de amor e felicidade. Mas é igualmente importante que, desde o início, nos preparemos serenamente para o momento da separação. Como qualquer processo de transformação interna, também a prática do desapego é um processo lento, doloroso e difícil. Numa sociedade como a nossa, em que a identidade pessoal e o prestígio individual assentam visivelmente na imagem e na ostentação, falar em desapego parece um contra-senso ou uma maldade. Que sentido, que utilidade poderá advir do acto de me anular a mim próprio, abdicando daquilo que me dá um inocente prazer pessoal? Esta é uma questão perfeitamente legítima quando um indivíduo se encontra ainda focado no seu ego e na identificação de si próprio com o seu corpo físico, as suas emoções e os seus pensamentos. Visto desta perspectiva, aquela pergunta parece fazer todo o sentido. Mas se analisarmos o problema do ponto de vista do espírito em evolução, aperceber-nos-emos que todos os objectos ou seres materiais poderão, na verdade, tornar-se obstáculos à sua evolução, caso o apego se torne insensato e excessivo. Os nossos afectos mais profundos e legítimos com os nossos familiares a amigos íntimos não nos devem cegar para o facto de que eles (como nós) são espíritos em evolução encerrados em corpos físicos e não apenas meros corpos materiais. Muitas pessoas afligem-se com o problema do desapego pensando que terão de vender as suas casas, os seus carros, abandonar as suas famílias e entrar para um convento. Ora, nada disto faz qualquer sentido. Todos os seres, ao encarnar, o fazem para cumprir um conjunto de tarefas e desenvolver um conjunto de aprendizagens que não poderiam executar caso se fizessem monges ou monjas. Não é isso que a vida lhes exige. O que é requerido é que cumpram as suas tarefas e desfrutem as suas relações com a plena consciência de não serem meros corpos físicos, mas espíritos provisória e temporariamente associados a corpos materiais e a realizar uma determinada etapa de um longo percurso evolutivo. Esta postura exige uma mudança radical no relacionarmento com os objectos, com os outros e com a vida. Não é, contudo, de todo óbvia e natural quando encarada da perspectiva do ego.

Mas os caminhos da espiritualidade não são os caminhos do ego. São os caminhos da libertação da prisão do ego (por muito agradável que possa parecer). É um caminho que todos irão inevitavelmente percorrer. Para alguns, aqueles que ainda se encontram nas etapas iniciais da sua evolução espiritual, nada disto fará qualquer sentido. E está bem assim, já que a etapa evolutiva em que se encontram exige experiências de vida profundamente ancoradas nas exigências do ego. Para aqueles poucos que já se encontram na recta final da sua evolução, o desapego parecerá algo tão natural como o acto de respirar. Para os outros, os que se encontram na fase de transição entre a vida egóica e a vida espiritual, o apelo do desapego será sentido de formas diversas – haverá aqueles que, apesar de o aceitarem em abstracto, terão uma enorme dificuldade e resistência em aplicá-lo a si próprios; outros, eventualmente mais amadurecidos, acharão a experiência progressivamente menos dolorosa e traumatizante; outros ainda, acharão que a prática progressiva do desapego tornará as suas vidas muito mais simples e leves, permitindo-lhes dedicar-se de uma forma mais intensa e livre à pacificação interna e ao serviço dos seus semelhantes.

Livro – “Na senda da espiritualidade”

José Caldas e Maria Carmelo